O Pantanal é um dos maiores tesouros naturais do Brasil e do mundo. Reconhecido como o maior ecossistema úmido contínuo do planeta, esse bioma abrange uma área de aproximadamente 210.000 km², atravessando os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, além de se estender por territórios da Bolívia e do Paraguai. Suas planícies alagadas, repletas de uma rica diversidade de fauna e flora, fazem do Pantanal um dos lugares mais biodiversos do mundo, com uma paisagem que se transforma drasticamente entre as estações seca e chuvosa.
Dentro desse cenário deslumbrante, surge o homem pantaneiro, um verdadeiro guardião da natureza. Vivendo em harmonia com o meio ambiente há séculos, o pantaneiro desenvolveu um conhecimento único sobre a fauna, a flora e os ciclos naturais desse ecossistema. Sua vida é uma sinfonia de adaptação às condições variáveis do Pantanal, onde as cheias e as secas ditam o ritmo das atividades diárias, desde a pesca até o manejo do gado.
Conhecer a cultura pantaneira é mergulhar em um mundo de tradições, histórias e saberes passados de geração em geração. É compreender a importância de preservar um modo de vida que está profundamente enraizado na natureza, mas que enfrenta desafios crescentes diante das mudanças ambientais e sociais. Valorizando a cultura pantaneira, não apenas preservamos a identidade de um povo, mas também contribuímos para a conservação do Pantanal, um patrimônio natural e cultural inestimável.
Origem e formação do homem pantaneiro
Raízes históricas: A história do homem pantaneiro é uma rica tapeçaria tecida por diversas influências culturais e históricas. Antes da chegada dos europeus, a região do Pantanal era habitada por diversas tribos indígenas, como os Guatós, Terena, Bororos e Kadiwéu. Esses povos desenvolveram uma profunda conexão com o meio ambiente, criando um vasto conhecimento sobre as plantas, animais e os ciclos naturais da região.
Com a chegada dos europeus, no século XVI, a região começou a ver uma mistura de culturas. Exploradores espanhóis e portugueses atravessaram o Pantanal em busca de riquezas, e, ao longo dos séculos, a presença europeia trouxe mudanças significativas. Os africanos, trazidos como escravos, também deixaram uma marca profunda na formação cultural do Pantanal, contribuindo com seus conhecimentos de cultivo, técnicas de pesca e caça, e tradições culturais que se misturaram às práticas indígenas e europeias.
Adaptação ao ambiente: O homem pantaneiro é, acima de tudo, um mestre da adaptação. Vivendo em um dos ambientes mais desafiadores do planeta, ele desenvolveu habilidades únicas para sobreviver e prosperar no Pantanal. As técnicas de pesca, caça, navegação e construção de abrigos foram adaptadas ao ritmo das cheias e vazantes, fenômeno natural que transforma completamente a paisagem do Pantanal ao longo do ano.
Durante as cheias, quando grande parte da planície pantaneira fica submersa, o pantaneiro se torna um exímio navegante, utilizando pequenas embarcações, como canoas, para se locomover e realizar suas atividades diárias. Já na época da seca, ele demonstra seu conhecimento sobre a localização de recursos hídricos, as melhores áreas para a caça e pesca e a prática de atividades de subsistência, como a coleta de frutos e plantas medicinais.
Mestiçagem e diversidade cultural: A identidade do homem pantaneiro é resultado de uma rica mistura de culturas. Ao longo dos séculos, a convivência entre indígenas, africanos, europeus e, mais tarde, migrantes de outras regiões do Brasil, deu origem a uma cultura singular, onde tradições se mesclam e se reinventam.
Essa mestiçagem cultural é visível em várias áreas da vida pantaneira, desde a culinária até as celebrações religiosas e sociais. A comida, por exemplo, traz influências de todas essas culturas, combinando ingredientes locais com técnicas de preparo trazidas por africanos e europeus. Já as festas e tradições são uma mistura de rituais indígenas, festividades católicas e celebrações populares de várias regiões do Brasil, refletindo a diversidade e a riqueza da cultura pantaneira.
A convivência com o ambiente natural e a necessidade de cooperação também reforçaram um forte senso de comunidade entre os pantaneiros. A troca de conhecimentos e a ajuda mútua são valores essenciais que definem a vida no Pantanal, onde cada indivíduo contribui para a sobrevivência e o bem-estar coletivo.
A vida cotidiana
Habitação: A arquitetura das habitações pantaneiras é um reflexo direto da adaptação ao ambiente alagadiço do Pantanal. Tradicionalmente, as casas são construídas com materiais locais, como barro e madeira, e muitas vezes são elevadas sobre palafitas para proteger contra as inundações sazonais. Essa elevação permite que as casas fiquem acima da linha d’água durante os períodos de cheia, garantindo a segurança e a preservação dos bens dos moradores. As paredes de pau-a-pique, uma técnica antiga que utiliza barro e madeira entrelaçada, ajudam a manter o interior fresco durante o calor intenso e fornecem isolamento durante as noites frias.
Alimentação: A alimentação do pantaneiro é diretamente influenciada pela riqueza natural da região. Peixes, como o pacu, o pintado e a piranha, são parte fundamental da dieta, sendo preparados de várias formas, como assados, fritos ou em caldeiradas. Além da pesca, a caça de animais como jacarés e capivaras também complementa a alimentação, embora hoje em dia essas práticas sejam reguladas para proteger a fauna local. A culinária pantaneira é rica em pratos tradicionais, como o arroz carreteiro, uma refeição simples e saborosa, preparada com carne seca, arroz e temperos locais. Outro prato típico é o caldo de piranha, famoso por seu sabor forte e propriedades revigorantes.
Trabalho: As atividades econômicas no Pantanal são diversificadas e intimamente ligadas ao ambiente natural. A pecuária extensiva é uma das principais fontes de sustento, com a criação de gado adaptado às condições locais. Os vaqueiros pantaneiros, conhecidos como peões, desempenham um papel essencial na condução e manejo do gado através das vastas planícies alagadas. A pesca também é uma atividade econômica relevante, não apenas para o consumo local, mas também para o abastecimento de mercados nas cidades vizinhas. O turismo ecológico, que vem crescendo nos últimos anos, tem proporcionado novas oportunidades de trabalho para os pantaneiros, como guias turísticos, condutores de barcos e funcionários de pousadas.
Ferramentas e equipamentos: O cotidiano do pantaneiro é marcado pelo uso de ferramentas e equipamentos específicos, adaptados às necessidades locais. O facão é uma ferramenta indispensável, usado para abrir caminho pela vegetação densa, cortar lenha e realizar diversas tarefas diárias. Redes de pesca, feitas de fibras resistentes, são essenciais para a captura de peixes nos rios e lagoas do Pantanal. Nas atividades de pecuária, as selas e arreios, feitos de couro resistente, são fundamentais para o manejo do gado. O conhecimento sobre a confecção e o uso dessas ferramentas é passado de geração em geração, refletindo uma tradição de autossuficiência e adaptação ao ambiente.
A cultura pantaneira
Festas e tradições: A vida social no Pantanal é marcada por festividades que refletem a identidade cultural pantaneira. A Festa de São João, por exemplo, é uma celebração que reúne a comunidade em torno de fogueiras, danças e comidas típicas, como a canjica e o bolo de milho. A Festa do Divino Espírito Santo, outra tradição importante, é celebrada com procissões, novenas e a famosa Cavalhada, uma encenação de batalhas medievais que simboliza a luta entre cristãos e mouros. Rodeios e torneios de laço são eventos comuns, que destacam as habilidades dos peões e a cultura de vaqueiros da região.
Música e dança: A música pantaneira é uma mistura rica de influências, refletindo a diversidade cultural da região. O modão e o rasqueado são gêneros musicais populares, tocados com a viola caipira e acompanhados por cantorias que falam sobre a vida no campo, o amor e as paisagens do Pantanal. As danças tradicionais, como a dança do siriri e a dança do cururu, são expressões vibrantes da cultura pantaneira, executadas com passos rápidos e enérgicos, muitas vezes acompanhadas por instrumentos de percussão.
Lendas e mitos: O folclore pantaneiro é rico em lendas e mitos que refletem a profunda conexão dos habitantes com a natureza e o sobrenatural. Histórias sobre o “Pai do Mato”, um espírito protetor das florestas, são comuns entre os pantaneiros, assim como contos sobre o “Minhocão”, uma serpente gigante que habita os rios e lagoas. Essas narrativas não apenas entretêm, mas também servem como forma de ensinar respeito pela natureza e seus mistérios.
Religiosidade: A religiosidade é uma característica marcante da cultura pantaneira, com uma forte presença da fé católica, herdada dos colonizadores portugueses. Festividades religiosas, procissões e romarias são comuns, e as capelas rústicas, muitas vezes construídas de madeira e barro, servem como centros de reunião espiritual para as comunidades. Além da fé católica, há também uma rica tradição de crenças populares e práticas sincréticas, que misturam elementos do catolicismo com crenças indígenas e africanas, resultando em uma espiritualidade única e profundamente enraizada no cotidiano dos pantaneiros.
A relação com a natureza
Conhecimento sobre a fauna e a flora: O homem pantaneiro possui um conhecimento profundo e intuitivo da fauna e flora do Pantanal, adquirido ao longo de gerações. Esse saber não é apenas teórico, mas essencial para a sobrevivência diária. Ele conhece as propriedades medicinais de várias plantas, como a arnica do campo, usada para tratar contusões, e o caraguatá, cujas fibras são usadas na confecção de cordas e cestos. Além disso, o pantaneiro é hábil em reconhecer os sinais da natureza, como o comportamento dos animais e as mudanças no vento e nas nuvens, que indicam a chegada das chuvas ou a migração de determinadas espécies.
Em relação à fauna, o pantaneiro sabe como se portar diante dos animais selvagens e tem uma relação de respeito e coexistência com eles. Ele entende os ciclos de vida das espécies locais, como a época de reprodução dos jacarés e o período de migração das aves. Esse conhecimento é crucial para o manejo sustentável dos recursos naturais, permitindo que as atividades econômicas, como a pesca e a pecuária, sejam realizadas de maneira equilibrada, sem comprometer o ecossistema.
Técnicas de sobrevivência: Viver no Pantanal requer habilidades específicas e um conjunto de técnicas de sobrevivência desenvolvidas ao longo do tempo. O pantaneiro sabe navegar pelos rios sinuosos e pelas planícies alagadas utilizando canoas feitas à mão, conhecidas como chalanas. Essas embarcações são essenciais para o transporte e para a pesca, especialmente durante a época das cheias, quando grande parte do território fica submersa.
Para caçar e pescar, o pantaneiro utiliza armadilhas e técnicas tradicionais, como a construção de tapagens, estruturas de madeira usadas para cercar peixes em áreas alagadas. Ele também é capaz de identificar e seguir trilhas de animais, um conhecimento vital tanto para a caça quanto para a segurança, evitando encontros perigosos com animais selvagens.
Além disso, o pantaneiro é um excelente rastreador e pode se orientar facilmente pelo sol, estrelas e outros sinais naturais, habilidades essenciais para se locomover em um ambiente vasto e muitas vezes desorientador como o Pantanal. Ele também sabe como encontrar água potável, construir abrigos temporários e identificar plantas comestíveis ou medicinais, conhecimentos que são passados de geração em geração e que demonstram uma profunda conexão com o ambiente.
Preservação ambiental: A preservação do Pantanal é uma preocupação crescente, e o homem pantaneiro desempenha um papel crucial na conservação deste ecossistema único. Historicamente, a relação do pantaneiro com a natureza é de equilíbrio e respeito, baseada na compreensão de que a sobrevivência humana está intrinsecamente ligada à saúde do ambiente.
Nos últimos anos, muitos pantaneiros têm se envolvido em iniciativas de preservação ambiental, trabalhando em colaboração com organizações não governamentais e pesquisadores para monitorar a biodiversidade e implementar práticas sustentáveis de uso da terra. A conservação de áreas de mata nativa, o manejo responsável da pecuária e o turismo ecológico são algumas das ações que ajudam a proteger o Pantanal.
Além disso, o pantaneiro é um defensor natural de sua terra, frequentemente se opondo a práticas que possam danificar o ecossistema, como o desmatamento descontrolado, a poluição dos rios e a caça ilegal. A conscientização e a valorização da cultura pantaneira são fundamentais para garantir que as futuras gerações continuem a desempenhar esse papel vital na preservação do Pantanal.
Conclusão
A importância de preservar a cultura pantaneira: A cultura pantaneira é um tesouro inestimável que deve ser preservado e valorizado. Ela representa não apenas a identidade de um povo, mas também uma forma de vida que está em perfeita harmonia com um dos ecossistemas mais ricos e diversos do planeta. A cultura pantaneira nos ensina sobre resiliência, adaptação e respeito pela natureza, valores que são cada vez mais essenciais em um mundo enfrentando mudanças climáticas e degradação ambiental.
Preservar essa cultura é preservar o conhecimento acumulado de gerações, é manter viva uma relação de respeito e cuidado com a natureza, e é garantir que a sabedoria do pantaneiro continue a iluminar o caminho para um futuro sustentável. Essa preservação é essencial não apenas para os pantaneiros, mas para todos nós, pois a riqueza cultural e natural do Pantanal é um patrimônio de toda a humanidade.
O futuro do homem pantaneiro: O futuro do homem pantaneiro enfrenta desafios significativos. As mudanças climáticas, a expansão da agricultura intensiva e o turismo descontrolado representam ameaças à sustentabilidade do Pantanal e à sobrevivência da cultura pantaneira. No entanto, há esperança. A crescente conscientização sobre a importância do Pantanal e a mobilização de comunidades locais, organizações e governos oferecem uma oportunidade para proteger essa região única.
Para garantir um futuro próspero, é necessário um esforço conjunto para promover o desenvolvimento sustentável, apoiar práticas agrícolas e pecuárias que respeitem o meio ambiente, e fomentar o turismo ecológico que valorize a cultura local e contribua para a conservação. Além disso, é fundamental investir na educação e no fortalecimento das comunidades pantaneiras, para que elas possam continuar a ser guardiãs da sua terra e da sua cultura.
Referência:
Jornal Midiamax:
SILVA, Marta Ferreira. Guatós, uma etnia que resiste às margens do rio Paraguai e Pantanal. Jornal Midiamax, 30 ago. 2021. Disponível em: https://midiamax.uol.com.br/cotidiano/2021/guatos-uma-etnia-que-resiste-as-margens-do-rio-paraguai-e-pantanal/. Acesso em: 01 set. 2024.
Revista Caros Amigos:
RIBEIRO, Chico. O Pantanal e o homem pantaneiro. Revista Caros Amigos, n. 242, jun. 2022. Disponível em: https://www.carosamigos.com.br/2022/06/20/o-pantanal-e-o-homem-pantaneiro/. Acesso em: 01 set. 2024.
Ecoa UOL:
FONSECA, Tatiana. Povos indígenas do Pantanal se unem por terra e direitos. Ecoa UOL, 10 dez. 2021. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/povos-indigenas-do-pantanal-se-unem-por-terra-e-direitos/. Acesso em: 01 set. 2024.
ICMBio:
INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE (ICMBio). O Pantanal e suas comunidades tradicionais. Disponível em: https://www.icmbio.gov.br/portal/areas-protegidas/gestao-eco-municipal/45-conteudo/4246-o-pantanal-e-suas-comunidades-tradicionais. Acesso em: 01 set. 2024.
Portal Embrapa:
EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA (EMBRAPA). Sistemas agrícolas tradicionais no Pantanal: conhecimento indígena e pantaneiro. Disponível em: https://www.embrapa.br/pantanal/publicacoes/sistemas-agricolas-tradicionais-no-pantanal-conhecimento-indigena-e-pantaneiro. Acesso em: 01 set. 2024.
Bernadino Silva, conhecido carinhosamente como “Seu Bernado” ou “O Véio Bernado”, foi um grande peão boiadeiro e indígena terena, nascido em Aquidauana. Irmão de Gregório e Venâncio, também peões boiadeiros, ele dedicou sua vida ao trabalho árduo das comitivas, conduzindo boiadas por longas distâncias nas fazendas da região. Pai de 8 filhos, Bernadino morou por muitos anos na casa de tijolos avermelhados, na Rua dos Ferroviários, e depois passou 30 anos vivendo com sua filha Márcia.
Seu Bernado foi uma figura marcante nas estradas do Pantanal, transportando boiadas para grandes fazendeiros e contribuindo imensamente para a preservação da cultura do homem pantaneiro. Ele era conhecido por suas histórias que revelavam os segredos das matas e planícies pantaneiras, onde a natureza e o gado se entrelaçavam em seu trabalho diário.
Em 2011, Bernadino foi homenageado pelo ex-prefeito Fauzi Suleiman no 1º Festival Pantaneiro, sendo reconhecido como um dos peões mais antigos de Aquidauana ainda vivo. Ele compartilhou esse momento com alguns de seus colegas de trabalho, celebrando uma vida dedicada ao ofício e à cultura local.
Mesmo após a aposentadoria, Seu Bernado mantinha sua presença nas ruas da cidade. Era comum vê-lo na rodoviária, tomando sua cervejinha, ou em casa com sua inseparável pinguinha. De social, camisa de manga curta e sempre de óculos escuros, ele gostava de sentar em frente à sua casa, acompanhado de seu radinho a pilha. Quando ele não estava por ali, muitos perguntavam por ele, e logo se sabia que estava em Campo Grande, visitando suas netas Cintia e Ana Cristina.
Além disso, fazia questão de suas compras no antigo mercado Barateiro, hoje São Rafael, e sempre comprava carne gorda para o churrasco de sua neta Suelen. Sua presença era sentida por todos, até que, infelizmente, em 18 de maio de 2019, sofreu um acidente doméstico e veio a falecer, deixando um vazio imenso entre amigos, familiares e companheiros de longa jornada. Seu Bernado será sempre lembrado não apenas como um grande peão boiadeiro, mas como uma lenda viva do Pantanal, um homem de histórias, tradições e um grande legado cultural.
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